OS COBRES DOS DENTES
1962 i’além do
mei’-pro-fim. Inda longe do corcovar d’anciania,
em quarentanos. Certa
paixão desilusa, insucedidos negócios padeirantes em clã-parceria outrora no d’sócio
vinham governando doravante vida sua. Pescador-charqueador, coureiro-caçador;
virara. Vivendo. Foi. Num só-com-deus-e-eu, sem estofo capitalístico. Ele: Sarcide.
Ribeirinho,
sobtelhava lonas, poucas. Palha-d’coco choçados, muitas. Vivia. Ínfimos
apetrechos pra d’cozer. Idem do d’vestir, d’calçar e s’lavar. A d’dois-canos-longos,
encartuchada. Um ebriático garrafão sempre rolhado; cinco litros pra sarar
solidão nos rios. Eremiticamente. Vivia; salvante o esturrar da onça vizinha.
Qu’ouvia, mas desvia.
Era manhã, o
sol no seu inda-durmo, Sarcide s’ despertou sob lonamente. À rudesconfortável
tarimba sentado: orou às almas, fiel. Regou faces d’olhos-azuis. Alinhou
entrededos lisos cabelos seus. Fito dilucular rosicler: redes, espinhéis, e a sondá.
Sarcide saiu.
Em volt’olhou. Adiante de si, premido em barrancosa parte, despenediado, o
sempre-vivaz Ivinhema cobreava desmesurado aos baixos-montes-pés, chuando
abstruso e brumoso. Devia ter cachimbado a noite toda; ainda baforava
aquel’hora, ocultando Espadinha, seu bote.
Eis que. Em
cautelos passos chinelados ombreando um remo-de-pinho e à mão a dois-canos, o
bornal noutr’ombro, Sarcide se pôs à trilha que torcia o barrancado pr’água.
Desceu. O Espadinha. Aguou os chinelos. Recalçou.
Lanternando faroletado, remando foi ter visita aos postos anzóis d’espinhéis,
rede de malha-oito, feiticeira, – que a Polícia Florestal sempre procura pra
recolher apreendida – e às sondás, em-longe e estreitado paraná, sob
avelhantada figueira, árvore de beira.
Apoitando o
bote, Sarcide principiou inspeção pela sondá que barulhava esquisito, rabeada,
deliciosa d’ouvir.
– Espinhél
e a rede vejo depois. O que ’tá pego tá pego.
Cuidadoso toque
com o espalmar do remo no esquisito rumoroso, e eis um som duro subindo
vibrando no roliço do cabo do remo, até a mão.
– Êita. ..
pêxe num é! S’ for, largo a pinga, e d’oje em diante só como jiló... Trêim rúim
dimais.
Inopinada nova
rabeada aparafusada, veio, e à seca-roupa respingando-s’lh’. Sarcide faroletou:
– Do-papo-amarelo!
Jacaré briguento!! Num falei que pêxe num era?...Cumê minha isca, hem? Agora eu
é que vô t’. Pra si só, disse Sarcide rindo. Ele, dele.
Içando a
cordinha da sondá no assento do bote, pisando-a c’um pé, Sarcide fez o bicho pescoçar fora d’água pra um bom-dia-sô!:
um tiro-d’frente no mole do papo e fim-d’festa do cascaburrento de bocaça, e
sono-eterno no fundo do bote, sob pés.
Saldo da visitágua:
um pintado, cinco corimbatás, uma arraia ferroenta na rede d’-nove. A malha.
Dois surubins-pintados e um pacu prateado nos espinhéis. Demais iscas; comidas,
sem.
– Tá bão,
meu Senhor! Jacaré de trinta quilos dá d’carne vinte... mais a dentaria. A
peixarada perfaz o faltante. ’Tá é bão. Vou reiscar com a carne d’arraia tudo
de novo. E já! Ô’ivinhemão!
Parara de
pitar o rio. D’ volta à casa, d’lona, sol-na-cara, num zum Sarcide eviscerou e
charqueou a peixama. Foi ao do-papo-amarelo. Desuniu a cabeça, estirou o
salgado cascouro num xis de lânguidas varas. Com chave-de-fenda martelada, faxou
um furo na queixada de ferro do rabudo. – Boca-dura, sô! Fincou uma
estaca barrancada, beira d’água, lh’amarrando a cachola do jacaré, limpa de
couro e carnes. Pinchou n’água do Ivinhema, às piranhas faxineiras; tiraria a
carniceira dentaria do-tal. Empós.
Sol d’ mei’dia-e-meia,
bife de jacaré, arroz macho, oleoso alhado. Sarcide deu ebriadas talagadas. Uns toscanejares.
Longo cochilado em rude tarimba de fofas aniagens. Sono. Justafluvial sinfonia
maestrada pelo canto espantado do quero-quero em sob um gavionar espreitante.
Quatr’e-meia. Tardosa. Talagadica, uma. Redespertável. Encanecad’o café-d’mariquinha.
Ao terreiro. Sarcide tud’olhava. Só.
E o Ivinhema,
sempre outro, passando, chuando peren’e viajante. Um súbito chap de
peixe puladiço n’água ali, acolá e mais pra lá. A paz das estrelas e o esturrar
da longe-onça. A nov’aurora. Os passos dela no terreiro, marcados. Estiver’ali.
Misteriosa para Sarcide, desvira. D'novo, 'tra vez.
O recolher e o
afazer co'a cabeça do bicho, mergulhada. Os dele dentes. Eis: com a boca cheia
da atada cordinha, próxima da estaca, uma sucuri de palmo-e-meio d’grosso, a
engolira. Tod’inteira; s’amarrara no por-dentro seu. Do d’fora s’ via nela o
formato cacholado e barrigado do que antes um de-papo-amarelo fora.
– Êita, sô!
Duas numa?!! Vô puxá a corda e a sucurona vem d’ arrasto. Depois ensaco e levo
pro viveiro d’Antonio Matias Sergipano, pr’ele vendê o couro pra nóis dois.
Pensamento
inocente d’ Sarcide: no ao-puxar da cordinha o bicho cinzento-esverdeado, quas’oliva,
foi lento tratando d’ desengolir a dura cachola, gosmentamente. Até que. Saiu saída, na
cordinha. Ela sucuri s’foi s’ausentando, indo esbarrancando, coleando sucurescafedente
como sói d’ser, e enriou de novo. Sumida.
E Sarcide: –
Burro véio, sô! Eu sô... Tem nada não. Ficô a cabeça do jacaré qu’eu queria, e
ela foi vortá pro seu ofício... Deus-a-olhe. Tudo carece de ter e ser.
Mundificada a
cabeça a-corda desembuchada, Sarcide extraiu as dezenas de remontados aligatorídeos
dentes.
Passad’uns três
e poucos trinta-dias, noutro certo dia, Sarcide levou o denterio caimão pra a
cidade. Pensou, pr’uns sobrinhos - dois; um Mais-Novo, um Mais-Velho – vender
aqueles dentes de jacaré pra raizeiros feirantes. Na corrutela; Surucuá.
O Mais-Novo já
lá, à feira foi, e perguntava mostrando à mão:
– Quer
comprar dente-de-jacaré, moço?
E reiterado
ouvia, biouvia e triouvia:
– Sai daqui
moleque! Não mexo co’essas cois’esquisitas...
O Mais-Velho só
via, assistido. Às vezes ria.
Foi a semana.
Ida. Veio a outra. Feirando o Mais-Velho, indagava barraca-em-barraca:
– O senhor
tem dente-de-jacaré pra vender?
– Num tenho,
moço.
– O senhor
tem dente...
– Num...
– O
senhor tem...
Duas-meia-hora
feir’afora: o Mais-Novo, raizeiramente, d’ novo:
– Compra
dente-de-jacaré? ... Dois-por-cinco...
– Pra quê
serve isso, menino?
– P'a mãe
furar e fazer um colarzinho pra pescoço de criança; aí nasce dentinhos sãos, fortes,
e num deixa dar dor-de-dente nunca... Simpati’antiga, moço. Sabia? É batata!
Outros
raizeiros. Vindo, viam. A conversa do Mais-Novo. E o povo’lhando. O fundo da
sacolinha. Nem o cheiro. Os cobres no bolso do Mais-Novo. Tilintaram.
No em-casa, o
Tio, o Mais-Novo, e o Mais-Velho:
– ...
venderam? E os cobres? A bufunfa, o dinheiro da venda?
– Ara, tio, nós dois já dividimos.
– E a minha
parte?, cadê?
– Num
sei... cumigo num ’tá. Fala cu'ele aí qu' é Mais-Velho.
Sarcide foi pro
quintal, olhou pro céu, pras nuvens. Ficou rindo-se de si por dentro, calado, da marosca ensobrinhada. E cacholou consigo mesmo, mineiramente:
– É... Isso é praga daquele papo-amarelo. Quá sô, tem besta mais não... Perdi a cabeça, os
dentes e o couro da sucura. Ô sina! E d’novo eu
no prijuízo. Sempre! Quá, num careço d’mais parceria nessa vida... nem noutra! – Rerriu-se. Só. Na lona, d’novo. Ele, Sarcide.
–
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Comentário d'A BALESTRA:

Este conto, escrito no início de
2008, foi inspirado em meu saudoso tio Alcides Balestra, sulmineiro
monte-santense, padeiro. Dobrado às circunstâncias repentemente se viu pescador-caçador. O Rio Paraná foi sua paixão. Conheceu outros mil rios e matas. Tive a oportunidade e o prazer de ler este conto pra ele, que riu um bocado num
fim de dia, com uma (segunda) latinha de cerveja à mão (a pinga, seu
quebra-gelo, ele já houvera tomado pra abrir o gogó).
Tio Alcides, ou “Sarcide” - como eu
o chamava carinhosamente -, hoje está completando três anos desde sua morte em 08.10.2008. Deixou-me
muitas saudades, das belas viagens que fizemos juntos pelo interior do Paraná e
Santa Catarina, das nossas conversas entusiasmadas, das copas mundiais que pela
televisão assistíamos, vibrantes, dos natais, dos dias-de-ano... Tio Alcides foi um homem elegante.
Imagens 1 e 3: by
arquivo pessoal de José Roberto Balestra
Imagem 2: by Atair - web