SÃO MARCOS
Naquele tempo eu morava no Calango-frito e não acreditava em feiticeiros.
(...)
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Bem... Bem que Sa Nhá Rita Preta cozinheira não cansava de me dizer:
– Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!
– Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!
E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de que eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mas mandando, e o prêto até que se ria, acho que achando mesmo graça em mim.
Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sa Nhá Rita Preta minha criada era êste: “...e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um grito horrorendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana, nem ferroada de marimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver...
Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio? Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, nem emplastro de fôlha de fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanfor!...
Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, pra pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga de cêra, que tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois, com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana!...”
Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito. O mestre dava muito coque, e batia de régua, também; Deolindinho, de dez anos, inventou a revolta – e êle era mesmo um gênio, porque o sistema foi original, peça por peça sòmente seu: “Cada um fecha os olhos e apanha uma fôlha no bamburral!” Pronto. “Agora, cada um verte água dentro da lata com as folhas!” Feito. “Agora, algum vai esconder a coisa debaixo da cama de Seu Professor!...”
E foi a lata ir para debaixo da cama, e o professor para cima da cama, e da lata, e das fôlhas, e do resto, muito doente. Quase morreu: só não o conseguiu porque, não tendo os garotos sabido escolher um veículo inodoro, o bizarro composto, ao fim de dia e meio, denunciou-se por si.
(...)”
Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sa Nhá Rita Preta minha criada era êste: “...e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um grito horrorendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana, nem ferroada de marimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver...
Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio? Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, nem emplastro de fôlha de fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanfor!...
Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, pra pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga de cêra, que tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois, com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana!...”
Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito. O mestre dava muito coque, e batia de régua, também; Deolindinho, de dez anos, inventou a revolta – e êle era mesmo um gênio, porque o sistema foi original, peça por peça sòmente seu: “Cada um fecha os olhos e apanha uma fôlha no bamburral!” Pronto. “Agora, cada um verte água dentro da lata com as folhas!” Feito. “Agora, algum vai esconder a coisa debaixo da cama de Seu Professor!...”
E foi a lata ir para debaixo da cama, e o professor para cima da cama, e da lata, e das fôlhas, e do resto, muito doente. Quase morreu: só não o conseguiu porque, não tendo os garotos sabido escolher um veículo inodoro, o bizarro composto, ao fim de dia e meio, denunciou-se por si.
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Cordisburgo (MG) hoje está que é só festa!
Lá junto do Creador, está completando 102 anos o POETA-MOR, João Guimarães Rosa.
"Depois dele não apareceu mais ninguém." - como diria outro poeta brasileiro, mas poeta-cantor, Belchior.
Texto: fragmento do conto SÃO MARCOS (in Sagarana), aqui reproduzido na grafia própria do seu autor, como era (e é!) da vontade de João Guimarães Rosa.
Interessante como as lembranças estão vivas e você parece gostar de revivê-las. Como bom canceriano, sentimental.
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