Direito e literatura: a utilidade da prática literária na atividade profissional do advogado
La
postulacion de los hechos se procesa através de uma muy compleja polifonia
narrativa de versiones-diversiones em pugna. No es solo que existan versiones
contrapuestas; puede suceder también, y no es infrecuente, que alguna version
abra una trama diversificada a partir de un detalle de la principal, o
simplemente diversa como diferente de la sostenida por otra de las partes. (José Calvo Gonzalez) [1]
Senhoras e
senhores,
1. Na minha primeira semana de aula no
Curso de Direito da Universidade Federal do Piauí, o professor Amaury Teixeira
Nunes, regente da disciplina Introdução ao Estudo do Direito, falou para nós,
seus alunos, a seguinte e marcante assertiva:
o advogado é o
profissional da palavra; dominem a palavra que vocês dominarão o Direito.
2. Ainda estudante, no primeiro dia de
estágio no escritório de advocacia do dr. Francisco de Sales e Silva Palha
Dias, ele me entregou os “meus primeiros autos de um processo”, disse-me para
ler de “capa a capa”, entender o que estava ali dentro, descobrir quais eram os
problemas e apontar as soluções em uma petição.
3. Indaguei o que realmente significava
uma petição. No que obtive a seguinte resposta: – “Uma petição é uma historinha convincente
e bem contada que o advogado escreve para o juiz.”
4. De lá para cá, tenho vivenciado que o
mundo jurídico é composto pelo universo das palavras, das histórias e estórias,
das narrativas, das versões, e da literatura normativa e argumentativa.
5. Pois bem, nesta breve intervenção
pretendo destacar a utilidade da Literatura na prática do Direito,
especialmente na do Advogado na confecção de peças processuais: petições,
memoriais, pareceres, manifestações e postulações jurídicas
6. Com efeito, nada obstante seja o
Direito um tipo de Literatura, é preciso distinguir essas duas modalidades
literárias.
8. O texto literário nasce da criatividade
e da necessidade do autor. O autor ou criador literário é livre para escrever
do modo e do jeito (estilo) que melhor lhe aprouver ou segundo os seus próprios
interesses e conveniências. O criador literário é soberano, é divino.
9. Já o Direito é um tipo de Literatura
voltado para a regulação das condutas e comportamentos humanos. É uma
Literatura “normativa” ou “prescritiva”. Não visa o “estético”, o “belo” ou o
“prazeroso” aos sentidos, mas o “lícito” ou o “ilícito”, segundo os seus
próprios critérios, em conformidade com as forças ou ideologias predominantes
em determinada coletividade e em determinado momento histórico.
12. Quanto maior for a “justiça” e a
“legitimidade” do Direito, mais belo e prazeroso ele terá condições de ser, e
maior será o grau de livre adesão e de fiel obediência a ele.
13. A “estética jurídica” é distinta
da “estética literária”.
14. Mas não irei cuidar das Palavras das
Leis nem das Palavras das Sentenças, que são textos de uma Literatura normativa
(ou prescritiva), que devem ser obedecidos, sob pena de uma sanção ou
reprimenda.
15. Nesta
intervenção falarei das Palavras dos Advogados contidas nas suas “peças”, que
também são textos literários, mas não de caráter normativo-prescritivo, mas de
caráter persuasivo.[2]
16. O advogado escreve para persuadir.
Essa é uma arte que exige apurada técnica. A arte de convencer o outro a
livremente concordar com os seus fundamentos normativos e argumentos jurídicos.
17. Se o “artista literário” domina a palavra
para agir com absoluta liberdade, o “artista da advocacia” deve dominar a
palavra para defender os interesses jurídicos dos seus constituintes.
18. Se o texto “literário” é de soberana
criação do seu autor, de acordo com as suas conveniências, caprichos,
possibilidades e necessidades, o texto “advocatício” não é um “capricho” do
autor, mas uma necessidade e que deve ter utilidade para o seu
cliente/constituinte.
19. Esse é um dogma inquestionável: a peça
advocatícia deve ser útil para os interesses que defende. O advogado não deve
revelar erudição “balofa” nas suas peças, mas erudição “útil”.
20. Isso porque, insista-se, o advogado
escreve para e por outro. O literato pode escrever para e por si. O advogado
não tem esse direito de escrever para e por si, mas para outro (o juiz) e por
outro (o constituinte/cliente).
21. Mas a qual a diferença entre a
literatura do advogado e a literatura do magistrado ou a do legislador
normativo?
22. O texto legislativo não necessita de
convencer às pessoas ou os seus destinatários. Ele deve ser obedecido.
23. Da mesma maneira sucede com o texto
judicial, em grau até mais forte que o próprio texto legislativo, pois a
sentença é a concretização específica de um mandamento legal abstrato e
hipotético. A sentença deve ser cumprida, sob pena de “castigos” ou “punições”.
24. Diferentemente ocorre com o texto
advocatício, que não tem força normativa, que não prescreve condutas nem comina
sanções, mas que deve convencer, que deve obter a livre adesão e concordância
de seu leitor, e não a sua obediência.
25. Toda Lei, bem como toda Sentença, deve
ser lida por todos, mas nem toda peça Advocatícia deve ser lida e conhecida por
todos.
26. Com efeito, ninguém é obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de uma “peça advocatícia”, mas somos
obrigados a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa em virtude das Leis e das
Sentenças.
27. Nessa perspectiva, como a
Literatura “literária” pode ajudar à Literatura “advocatícia”? Qual a
utilidade da Literatura “literária” para o advogado na confecção de suas peças?
29. Quanto maior for a quantidade de
textos literários lidos e melhor a qualidade desses textos, maior será a
capacidade de leitura e melhor a qualidade das compreensões e interpretações
que forçosamente ocorrerá. É uma consequência natural.
30. A outra habilidade indispensável
para o sucesso profissional do advogado é a capacidade de bem escrever. Aprendi
com o meu pai, desde as minhas primeiras letras e luzes, que somente escreve
bem quem lê bem. Somente sabe escrever quem souber ler. Quanto melhor o leitor,
melhor será o escritor. Dificilmente um bom escritor é um mal leitor. A rigor,
todo bom escritor é um excelente leitor.
31. Evandro Lins e
Silva[3], que foi um grande magistrado e um excepcional advogado
criminalista, defendia apaixonadamente a necessidade de o advogado ler de tudo,
ler mais do que textos jurídicos, ler poesias, romances, contos, viajar na
imaginação, para poder ir além do Direito e para poder encontrar soluções além
daquelas facilmente percebidas.
32. Tenha-se que o advogado é um
postulador, um suplicante, um profissional que deve utilizar de seu talento
para convencer o outro. Independentemente de quem seja esse outro, ou de qual
instância seja o juiz.
33. Nem sempre ele consegue a adesão do
leitor, mas o seu compromisso há de ser com os interesses que representa, com
os direitos do seu cliente.
34. Para alcançar esse objetivo, o
advogado deve mirar no cérebro e no coração do leitor (magistrado). Ele deve
equilibrar a razão e a emoção na defesa de seu cliente. O advogado deve
ser um frio apaixonado.
35. Para que ele tenha essa paradoxal
habilidade, ele deverá possuir a ciência do conhecimento e da leitura; a
experiência da vida e dos sacrifícios; a consciência da missão ética de suas
atividades; e, quem sabe, a inconsciência de suas escolhas e visões.
36. Mas afinal, como a literatura pode ser
útil para o advogado? Desenvolvendo o bom gosto, a criatividade, a capacidade
de compreender a realidade, de ler os textos, de escrever as postulações e de
convencer.
37. Pois para convencer é preciso saber. E
para saber é preciso estudar. E para estudar e conhecer é preciso ler, ler
muito. Ensinava o prof. José Alfredo Baracho: “só sabe quem lê”.
38. Não há conhecimento útil nem sabedoria
prática sem muito estudo, sem dedicação e sem esforço. Não há aprendizagem sem
mérito.
39. Finalizo recordando a seguinte
passagem de ouro da literatura advocatícia.
41. Naqueles tempos dramáticos, de
situação ameaçadora, os presos políticos do regime autoritário varguista
estavam sendo vítimas de maus-tratos físicos e psicológicos, estavam sendo
vilipendiados, brutalizados, tratados sem respeito e sem consideração, ou seja
com a dignidade humana garroteada.
42. Naqueles tempos
sombrios e para aquelas pessoas, as leis não protegiam nem socorriam os homens.[5]
43. Somente advogados combativos e
intimoratos ousavam desafiar o arbítrio do Poder e a irracionalidade da Força
para defender os inimigos do sistema.
44. Eis o que postulou Sobral Pinto, um
grande advogado e um monumental brasileiro, um homem incorruptível, que nunca
se furtou em suas responsabilidades profissionais ou cívicas:
“(...) Tanto mais obrigatoriamente inadiável se torna a
intervenção urgentíssima de V. Exa., Sr. Juiz, quanto somos um povo que
não tolera a crueldade, nem mesmo para com os irracionais, como o demonstra o
decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934, cujo artigo 1º dispõe: ‘Todos os
animais existentes no país são tutelados do Estado’.
Para tornar eficiente tal tutela, esse mesmo decreto estatui:
‘Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus tratos
aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão celular
de 2 a 10
dias, quer o delinquente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da
ação civil que possa caber” (art. 2º).
E, para que ninguém possa invocar o benefício da ignorância
nesta matéria, o art. 3º do decreto supra mencionado define: ‘Consideram-se
maus tratos: ...: II – manter animais em lugares anti-higienicos ou que lhes
impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz’.
Baseado nesta legislação um dos juízes de Curitiba, Estado do
Paraná, dr. Antonio Leopoldo dos Santos, condenou João Maneur Karen à pena de
17 dias de prisão celular, e à multa de 20$000, por ter morto a pancada um
cavalo de sua propriedade.
Ora, num país que se rege por tal legislação, que os Magistrados
timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais
irracionais dos maus tratos até dos seus donos, não é possível que Harry Berger
permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de
Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada, privado de ar, de luz, e de
espaço, envolto, além do mais, em andrajos, que pela imundície, os próprios
mendigos recusariam a vestir (...)
Impõe-se, assim, que, sem mais a delonga de um minuto, V. Exa.
ordene, com a sua autoridade de magistrado, que Harry Berger seja transferido,
imediatamente, para uma cela condigna, onde, a par de cama, roupa, vestuário, e
objetos próprios para escrever, - de que está carecendo para a sua defesa -, se
lhe permita fazer as leituras que bem lhe aprouver, tudo, porém dentro das
normas da vigilância prudente, que a administração carcerária costuma, em face
dos detentos políticos, por em prática, para evitar confabulações perigosas dos
encarcerados com os seus partidários políticos ainda em liberdade.
Formulando o presente requerimento tem o Suplicante cumprido
apenas o seu dever, oferecendo, entretanto, com isso, a V. Exa. a adequada
oportunidade para que, sob os ditames imperiosos da sua consciência de homem e
de Magistrado, possa V. Exa. cumprir o seu, com igual solicitude."
45. O juiz restou convencido,
acolheu a postulação do advogado. A integridade física do preso político foi
salva. Bem como a sua vida.
46. Outros eram aqueles tempos.
Outros eram aqueles homens!
Obrigado pela atenção!
NOTAS
[1] La verdad de La verdad judicial:
construcción y régimen narrativo. Texto extraído da página pessoal do autor:
http://webpersonal.uma.es/~JCALVO/docs/verdadjudicial.pdf
[2] PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica.
Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[3] A defesa tem a palavra. 1980, p. 20.
[4] Por que defendo os comunistas? Belo
Horizonte, Editora Comunicação: 1979.
[5] Há uma excelente Dissertação de
Mestrado sobre essa defesa de Sobral Pinto. Autor: Daniel Monteiro Neves.
Título: Como se defende um comunista: uma análise retórico-discursiva da defesa
judicial de Harry Berger por Sobral Pinto. Universidade Federal de São João
Del-Rei. Programa de Mestrado em Letras. São João Del-Rei/MG, 2013.
*LUÍS CARLOS MARTINS ALVES Jr. é natural de Campo Maior (PI). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Procurador da Fazenda Nacional perante o Supremo Tribunal Federal. Advogado público federal inscrito na OAB/DF. Professor de Direito Constitucional no Centro Universitário de Brasília e no Centro Universitário de Anápolis.
Imagens: by web
Parabéns, Nobre Causídico. Mais uma vez você surpreende a todos com um Tratado Literário e várias aulas contidas no mesmo. Obrigado. Ass. Gabriel Esperidião Netto (Velho Gagá)
ResponderExcluirO mundo da justiça é verdadeiramente admirável.
ResponderExcluirD’onde vêm seus princípios?
Já nasceu com o surgimento da vida;
Já nasceu com os deuses.
Lá na antiga Grécia, quis o mundo grego imputar a Sócrates a ingestão da cicuta (veneno). Era uma forma “civilizada” de fazer o condenado executar sua própria sentença de morte. Não suportaram o clarão de sua lucidez e o condenaram. Sócrates não quis fugir, depois de ser condenado, apesar de instado pelos seus discípulos, porque sua condenação foi injusta. Preferiu cumprir a decisão dos homens, mas agiu assim por acreditar em leis maiores: não acreditava na morte, e sim que a vida continua em outras paragens. Sua história é recheada por valores éticos, morais, espirituais, conforme os escritos de Platão. Fez sua própria defesa baseada nas suas crenças, e não quis negá-las. Não quis ser incoerente com o que pregava. Sua eloquência poderia ter mudado sua sentença.
Abraçou a vida, e não a negou, de acordo com suas convicções, apesar de sua morte.
O direito é campo aberto às práticas de diversos princípios. Age no cenário amplo da existência, desde tempos remotos.
A profissão de advogado e juiz é admirável por isso: exige uma gama de conhecimentos, abrangentes, que expandam os conceitos sobre as coisas da vida.
Parabéns ao amigo José Roberto pelo excelente texto. Parabéns pela sua sensibilidade em se dedicar ao direito, às causas humanitárias.
Abs.