
Domingo alto. Quase meia. Noite veranosa, besourando o chão da luminária azeitonamente. Final de 1986. Maringá; Avenida Colombo. Hotel rotativo nas cercanias do Viaduto Tuiuti. Marafonas. Algazarras etílicas.
– Nêgo num presta mêmo! Quand’é muleque só si apega no do aleio, e quand’ vira ômi só presta pra batipau... ficar encostado em buque. – disse agravosa Duvirge, a sarará com vista obumbrada, saracoteante, à amiga de vetusto ofício, Escolástica, nome-de-guerra Fulorzinha.
Ambas com pernas trôpegas, cervejadas, pingadas. Fulorzinha, com a glote ruidosa, arfava feito uma vaca corrida no pasto. Calada. Bituca embrasando queimante entrededos.

Zé Doca, o tira crioulão hibridado, metro-e-noventa-e-sete, sentindo sua pilha de músculos ser flechada nos brios, tratou logo de impor silêncio à navalhante voz canosa.
– Se tu não parar com essa de nêgo, já já vou lhe danificar a terceira geração, sua jia!!
Sob plácidos passos, porém largos, segurando um punho fêmeo em cada mão, o tira se deteve à porta da cela-3. Largou as presas recostadas na parede, equilibradas nas magras pernas. Enfiou a rechonchuda mão – ferramenta de iniciais corretivos quando preciso – no bolso da cotiada calça de brim, tirando um molho com seis chaves e um penduricalho de brinde.
Rotineiro, sem sequer olhar o alvo, olhando pras duas "freguesas" Zé Doca enfiou certeiro a chave maior no desgastado buraco da fechadura. Rodou. Cléque! Empurrou rangente triste a porta de ferro, que se abriu seca chorante.
– Pronto, gente boa! Podem se acomodar que a conta do dormitório hoje já 'tá paga... pelo povo! Mas a comida sou eu quem dá. É só me encher mais um pouco. Tem pau de manhã, pau no almoço, um “cházinho” às três e pau-de-arara de noite, que é pro hóspede não se incomodar com falta de agasalho; aqui deita aquecido.
Nada daquilo ouviram nem riram. Elas. Nada. Entupid'ouvidos com bagaços de canas, camas, e brincos bijouteiriços.
Duvirge, arrotava dragãomente aguardente ordinária e lúpulos; jogou o ébrio corpo travado sobre a parte inferior do beliche de verde concreto nu da cela. Babando o bambo sutiã adormeceu, mais frouxa que barrigueira de cavalo velhaco.
Escolástica, zombada pelo destino até no próprio nome, analfabeta, mal se sustendo nos gambitos, rendera-se à friúra do piso; a cama do alto do beliche lhe parecera o Everest! Amodorrou-se ali mesmo, encolhida feito fosse ferida.
Chuva fina. Raros trovões. Relâmpagos longínquos riscavam seus fósforos. À calma madrugada no buque sucedeu a luz do dia novo em folha. Ressurgiu a vida normal. Mas difícil. Cabeças pesadas, toneladas.
Segunda-feira. Fim do plantão do fim de semana. Oito e meia. No Gabinete do delegado:
– Pronto pros depoimentos das muié, seo Dotô!
As duas rameiras. Frente-a-frente com o delega no buque, cabelos de vassoura velha. Prantivas crocodilosas, de plano aventuraram-se a assoalhar de argumentos a “injustiça” do xilindró lhes aplicado pelo tira Zé Doca. Discorriam juntas o palavrório baralhado, em coro, ao delegado.
Gravata torta em colarinho, nó frouxo. Mão esquerda no queixo, cabisbaixo, fingindo ouvi-las, o doutor delegado cofiava a grisalha barbicha. Com a mão direita riscava um papel comum com a caneta-de-brinde barata.
De súbito, entojado pelo cheiro de álcool dormido, o delegado levantou a cabeça e as interrompeu, voltando-lhes a palma da mão direita em basta!:
– Zé Doca, não vou tomar depoimento nenhum hoje! Solt'essas pestes!! O fogo delas já apagou. Abre vaga aí na nossa pensão...
Confiante no subalterno, o delegado desviou tornados olhos para os papéis sobre a mesa. A nota-de-prisão.
Duvirge e Fulorzinha, inda de bocas acres leve sorriram irônicas ao tira prendedor, sem nem escovação.
Disfarçado do chefe que mirava olhos à nota-de-prisão/soltura sobre a mesa, Zé Doca respondeu às vendedoras-de-corpos, simulando um abotoamento na sua camisa frouxa: no próprio peito, mostrou-lhes mão fechada e dedo médio em riste...
– ... nóis pod'ir, dotô?
– Vai! Sumam daqui! Antes que eu vomite e perca a paciência!! ...e vê se tomem banho...

Comentário: crônica escrita em 2007, já publicada no meu blog A BALESTRA perdido ano passado.
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