Papelzinho
de bala (12.06.2008)
Lembro-me da
primeira vez que vi você caminhando pela minha rua. Era manhã duma
quinta-feira, fazia um pouco de frio, um arzinho gelado, chato, e você ia com
pressa, mas pisava tão leve que sequer eu ouvia o som de seus sapatos tocando o
chão enquanto passava perto de mim. Com sua roupa simples e bonita, parecia
flutuar, mas muito além de ser só bonita sua roupa; caia-lhe especial. Sem me
dar conta do tempo, do portão fiquei te olhando, te olhando, você indo já lá
longe, quase no fundo da rua, foi ficando menor, menor, até que sumiu num
cruzamento.
Voltei para dentro de casa, retomei a
ordinariedade das coisas tão triviais da vida; o arrumar da cama, o dobrar
minhas roupas que usava em casa, o escovar e o guardar dos sapatos na gaveta.
Assim ia eu meu dia. Todavia, de repente vi que sua imagem andando fincara-me,
fixada como um painel de rua no breu da noite chamando sua presença:
iluminava-se, crescia, eu olhava, via, e depois tudo ia sumindo afunilado. Em
pouco, como as ondas de um lago em dias de vento brando, voltava. Sinceramente,
não entendi o porquê daquilo comigo.
Mas saí também à minha faina; era preciso
trabalhar. Sem perceber o meu projetor daquele filminho desligou-se. As
coisas da cidade, os carros passando, a vida corrida, meus anseios de vitória,
o trabalho, os bancos, a escola, contas pra pagar, o namoro rápido às vitrines
das lojas com a moda chegando, tudo isso me reconduziu à normalidade, à velha
ordinariedade de que falei.
A semana acabou, veio o domingo. Fui à missa
das sete na catedral, lugar mágico que a gente, esquecendo as vaidades tão vãs,
acha que fica mais perto de Deus de verdade. À saída do templo assustei-me: vi
você de novo. E como uma caixa de tarol à frente duma fanfarra, meu coração
rufou acelerado. Pensei que ia morrer. Mas se fosse, teria sido muito bom ter
morrido daquele jeito, feliz, te vendo! De novo você, sem perceber nada que
comigo acontecia, se misturou ao povo que respeitosamente deixava a igreja.
Desapareceu como bruma ventilada...
Parei na escadaria da catedral, olhei para os
lados para te achar, e por fim conclui: sumira mesmo dos meus olhos, que pena!
Resolvi ir pra casa. Misturei-me também à pequena multidão. E quando parei na
calçada para olhar os carros e atravessar a rua, novamente outro luminoso susto
me invadiu; você estava ali, pertinho de mim, até ao alcance de minhas mãos,
desenrolando o papel duma bala de cereja.
Como se conhecidos fôssemos de muito tempo,
meus olhos cruzaram-se com os seus. Você me sorriu. Depois é que percebi que
eu, ao impulso do coração rufando, houvera lhe sorrido primeiro. Você apenas me
respondera. ¿Ou correspondera? Atacou-me essa dúvida insana. Fingi esperar um
pouco, e assim que você atravessou a rua, discreta e rapidamente abaixei-me e
peguei o papelzinho de bala, da sua bala. O vento repentino dum carro
que passava o soprou para mais longe de mim, mas apressei-me e pude recolhê-lo
sem você ver. Enrolei-o em borboleta, com carinho. Por algum tempo fiquei
olhando pr’aquilo. Depois, levantei os olhos. Não mais lhe vi. Então guardei
comigo o meu troféuzinho do coração.
Os ventos da vida fizeram seus itinerários
sobre mim, até que num sábado de manhã, enquanto eu comprava uma revista na
banca, sem que eu visse você chegou bem perto de mim e disse bom dia!
Pensei que fosse alguém cumprimentando o dono da banca, e continuei olhando as
capas expostas, distraidamente. Mas aí, mais perto de mim, você me desmontou ao
repetir: – Bom dia! Como vai? E antes que a resposta presa na minha
garganta saísse você quase me matou do coração:
– ¿Ainda está guardado?
– ¿O quê?
– O papelzinho de bala?!
Sem palavras, naquel’instante meus olhos
correram-lhe o corpo de cima a baixo. Sorri sem graça, disfarcei um olhar sobre
as revistas e jornais expostos e, perdoe-me aquele meu atrevimento, mas eu não
pude me conter quando meus braços, como um autômato, levantaram-me as mãos e
foram encontrar-se com as suas que estavam tão quentinhas. Foi mais que um
aperto de mãos aquele cumprimento: eu te abracei sem você saber...
Um fiozinho de raio de sol bateu em meus
olhos. À estranha sensação, acordei. Olhei para o teto, reviajei comigo:
– ¿Que coisa? ¿Sonho? ¿Que sonho lindo eu
tive? Dá um conto, ou mais... Puxa!...
Então sentei-me na beira da cama, pisei o
macio do tapete de algodão trançado, esfreguei o rosto com as mãos, enchi os
pulmões com o ar novo do dia, espreguicei-me, e só então foi que vi sobre o
criado-mudo:
- ...um papelzinho de bala? Borboleteado?
¿Então não foi um sonho?...
... e senti quando todas aquelas maravilhas
se recolheram pro mais fundo do meu coração, na sua morada perpétua.