“QUANDO AS SOMBRAS AMEAÇAM O CAMINHO, A LUZ É MAIS PRECIOSA E MAIS PURA."

(Espírito Emmanuel, in "Paulo e Estêvão", romance por ele ditado a Chico Xavier)

Meus Amigos e blogAmigos!

sábado, 8 de outubro de 2011

Sarcide e os cobres dos dentes


OS COBRES DOS DENTES



1962 i’além do mei’-pro-fim. Inda longe do corcovar d’anciania, em quarentanos. Certa paixão desilusa, insucedidos negócios padeirantes em clã-parceria outrora no d’sócio vinham governando doravante vida sua. Pescador-charqueador, coureiro-caçador; virara. Vivendo. Foi. Num só-com-deus-e-eu, sem estofo capitalístico. Ele: Sarcide.

Ribeirinho, sobtelhava lonas, poucas. Palha-d’coco choçados, muitas. Vivia. Ínfimos apetrechos pra d’cozer. Idem do d’vestir, d’calçar e s’lavar. A d’dois-canos-longos, encartuchada. Um ebriático garrafão sempre rolhado; cinco litros pra sarar solidão nos rios. Eremiticamente. Vivia; salvante o esturrar da onça vizinha. Qu’ouvia, mas desvia.

Era manhã, o sol no seu inda-durmo, Sarcide s’ despertou sob lonamente. À rudesconfortável tarimba sentado: orou às almas, fiel. Regou faces d’olhos-azuis. Alinhou entrededos lisos cabelos seus. Fito dilucular rosicler: redes, espinhéis, e a sondá.

Sarcide saiu. Em volt’olhou. Adiante de si, premido em barrancosa parte, despenediado, o sempre-vivaz Ivinhema cobreava desmesurado aos baixos-montes-pés, chuando abstruso e brumoso. Devia ter cachimbado a noite toda; ainda baforava aquel’hora, ocultando Espadinha, seu bote.

Eis que. Em cautelos passos chinelados ombreando um remo-de-pinho e à mão a dois-canos, o bornal noutr’ombro, Sarcide se pôs à trilha que torcia o barrancado pr’água. Desceu. O Espadinha. Aguou os chinelos. Recalçou. Lanternando faroletado, remando foi ter visita aos postos anzóis d’espinhéis, rede de malha-oito, feiticeira, – que a Polícia Florestal sempre procura pra recolher apreendida – e às sondás, em-longe e estreitado paraná, sob avelhantada figueira, árvore de beira.

Apoitando o bote, Sarcide principiou inspeção pela sondá que barulhava esquisito, rabeada, deliciosa d’ouvir.
– Espinhél e a rede vejo depois. O que ’tá pego tá pego.

Cuidadoso toque com o espalmar do remo no esquisito rumoroso, e eis um som duro subindo vibrando no roliço do cabo do remo, até a mão.
– Êita. .. pêxe num é! S’ for, largo a pinga, e d’oje em diante só como jiló... Trêim rúim dimais.

Inopinada nova rabeada aparafusada, veio, e à seca-roupa respingando-s’lh’. Sarcide faroletou:

– Do-papo-amarelo! Jacaré briguento!! Num falei que pêxe num era?...Cumê minha isca, hem? Agora eu é que vô t’. Pra si só, disse Sarcide rindo. Ele, dele.

Içando a cordinha da sondá no assento do bote, pisando-a c’um pé, Sarcide fez o bicho pescoçar fora d’água pra um bom-dia-sô!: um tiro-d’frente no mole do papo e fim-d’festa do cascaburrento de bocaça, e sono-eterno no fundo do bote, sob pés.

Saldo da visitágua: um pintado, cinco corimbatás, uma arraia ferroenta na rede d’-nove. A malha. Dois surubins-pintados e um pacu prateado nos espinhéis. Demais iscas; comidas, sem.
– Tá bão, meu Senhor! Jacaré de trinta quilos dá d’carne vinte... mais a dentaria. A peixarada perfaz o faltante. ’Tá é bão. Vou reiscar com a carne d’arraia tudo de novo. E já! Ô’ivinhemão!

Parara de pitar o rio. D’ volta à casa, d’lona, sol-na-cara, num zum Sarcide eviscerou e charqueou a peixama. Foi ao do-papo-amarelo. Desuniu a cabeça, estirou o salgado cascouro num xis de lânguidas varas. Com chave-de-fenda martelada, faxou um furo na queixada de ferro do rabudo. – Boca-dura, sô! Fincou uma estaca barrancada, beira d’água, lh’amarrando a cachola do jacaré, limpa de couro e carnes. Pinchou n’água do Ivinhema, às piranhas faxineiras; tiraria a carniceira dentaria do-tal. Empós.

Sol d’ mei’dia-e-meia, bife de jacaré, arroz macho, oleoso alhado. Sarcide  deu ebriadas talagadas. Uns toscanejares. Longo cochilado em rude tarimba de fofas aniagens. Sono. Justafluvial sinfonia maestrada pelo canto espantado do quero-quero em sob um gavionar espreitante. Quatr’e-meia. Tardosa. Talagadica, uma. Redespertável. Encanecad’o café-d’mariquinha. Ao terreiro. Sarcide tud’olhava. Só.

E o Ivinhema, sempre outro, passando, chuando peren’e viajante. Um súbito chap de peixe puladiço n’água ali, acolá e mais pra lá. A paz das estrelas e o esturrar da longe-onça. A nov’aurora. Os passos dela no terreiro, marcados. Estiver’ali. Misteriosa para Sarcide, desvira. D'novo, 'tra vez.

O recolher e o afazer co'a cabeça do bicho, mergulhada. Os dele dentes. Eis: com a boca cheia da atada cordinha, próxima da estaca, uma sucuri de palmo-e-meio d’grosso, a engolira. Tod’inteira; s’amarrara no por-dentro seu. Do d’fora s’ via nela o formato cacholado e barrigado do que antes um de-papo-amarelo fora.

– Êita, sô! Duas numa?!! Vô puxá a corda e a sucurona vem d’ arrasto. Depois ensaco e levo pro viveiro d’Antonio Matias Sergipano, pr’ele vendê o couro pra nóis dois.

Pensamento inocente d’ Sarcide: no ao-puxar da cordinha o bicho cinzento-esverdeado, quas’oliva, foi lento tratando d’ desengolir a dura cachola, gosmentamente. Até que. Saiu saída, na cordinha. Ela sucuri s’foi s’ausentando, indo esbarrancando, coleando sucurescafedente como sói d’ser, e enriou de novo. Sumida.

E Sarcide: – Burro véio, sô! Eu sô... Tem nada não. Ficô a cabeça do jacaré qu’eu queria, e ela foi vortá pro seu ofício... Deus-a-olhe. Tudo carece de ter e ser.

Mundificada a cabeça a-corda desembuchada, Sarcide extraiu as dezenas de remontados aligatorídeos dentes.

Passad’uns três e poucos trinta-dias, noutro certo dia, Sarcide levou o denterio caimão pra a cidade. Pensou, pr’uns sobrinhos - dois; um Mais-Novo, um Mais-Velho – vender aqueles dentes de jacaré pra raizeiros feirantes. Na corrutela; Surucuá.

O Mais-Novo já lá, à feira foi, e perguntava mostrando à mão:
– Quer comprar dente-de-jacaré, moço?
E reiterado ouvia, biouvia e triouvia:
– Sai daqui moleque! Não mexo co’essas cois’esquisitas...
O Mais-Velho só via, assistido. Às vezes ria.

Foi a semana. Ida. Veio a outra. Feirando o Mais-Velho, indagava barraca-em-barraca:
– O senhor tem dente-de-jacaré pra vender?
– Num tenho, moço.
– O senhor tem dente...
– Num...
– O senhor tem...

Duas-meia-hora feir’afora: o Mais-Novo, raizeiramente, d’ novo:
– Compra dente-de-jacaré? ... Dois-por-cinco...
– Pra quê serve isso, menino?
– P'a mãe furar e fazer um colarzinho pra pescoço de criança; aí nasce dentinhos sãos, fortes, e num deixa dar dor-de-dente nunca... Simpati’antiga, moço. Sabia? É batata!

Outros raizeiros. Vindo, viam. A conversa do Mais-Novo. E o povo’lhando. O fundo da sacolinha. Nem o cheiro. Os cobres no bolso do Mais-Novo. Tilintaram.

No em-casa, o Tio, o Mais-Novo, e o Mais-Velho:
– ... venderam? E os cobres? A bufunfa, o dinheiro da venda?
– Ara, tio, nós dois já dividimos.
– E a minha parte?, cadê?
– Num sei... cumigo num ’tá. Fala cu'ele aí qu' é Mais-Velho.

Sarcide foi pro quintal, olhou pro céu, pras nuvens. Ficou rindo-se de si por dentro, calado, da marosca ensobrinhada. E cacholou consigo mesmo, mineiramente:

– É... Isso é praga daquele papo-amarelo. Quá sô, tem besta mais não... Perdi a cabeça, os dentes e o couro da sucura. Ô sina!  E d’novo eu no prijuízo. Sempre! Quá, num careço d’mais parceria nessa vida... nem noutra! – Rerriu-se. Só. Na lona, d’novo. Ele, Sarcide.
– ................................................


-o-o-o-o-


Comentário d'A BALESTRA:

Este conto, escrito no início de 2008, foi inspirado em meu saudoso tio Alcides Balestra, sulmineiro monte-santense, padeiro. Dobrado às circunstâncias repentemente se viu pescador-caçador. O Rio Paraná foi sua paixão. Conheceu outros mil rios e matas. Tive a oportunidade e o prazer de ler este conto pra ele, que riu um bocado num fim de dia, com uma (segunda) latinha de cerveja à mão (a pinga, seu quebra-gelo, ele já houvera tomado pra abrir o gogó).  

Tio Alcides, ou “Sarcide” - como eu o chamava carinhosamente -, hoje está completando três anos desde sua morte em 08.10.2008. Deixou-me muitas saudades, das belas viagens que fizemos juntos pelo interior do Paraná e Santa Catarina, das nossas conversas entusiasmadas, das copas mundiais que pela televisão assistíamos, vibrantes, dos natais, dos dias-de-ano... Tio Alcides foi um homem elegante.

Imagens 1 e 3: by arquivo pessoal de José Roberto Balestra
Imagem 2: by Atair - web