“QUANDO AS SOMBRAS AMEAÇAM O CAMINHO, A LUZ É MAIS PRECIOSA E MAIS PURA."

(Espírito Emmanuel, in "Paulo e Estêvão", romance por ele ditado a Chico Xavier)

Meus Amigos e blogAmigos!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ah, que é que o bicho fez, que é que o bicho paga?


Com parárafos formatados respeitosa e especialmente para os leitores do blog, e segundo a grafia da época, 1958, a seguir uma das passagens mais emocionantes da iluminada narrativa rosiana, posta na boca do personagem RIOBALDO TATARANA, no livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.


Episódio: a crudelíssima morte dos cavalos de Riobaldo, de seu chefe Zé Bebelo com seus valentes homens, os bebelos, estando estes confinados na casa velha da Fazenda dos Tucanos, por tiros inimigos vindos sem pena de Hermógenes e seus desumanos jagunços que ali os encantoam, enquanto todos os animais estavam guardados num curral fechado...


"(...) Mas, no sobrevento, o Cavalcânti se exclamou:
— "A que estão matando os cavalos!..."
Arre, e era. Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não tinham culpa de nada; e êles, cães aquêles, sem temor de Deus nem justiça de coração, se viraram para judiar e estragar, o rasgável da alma da gente - no vivo dos cavalos, a tôrto e direito, fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt'-e-baixos — entendendo, sem saber, que era o destapar do demônio — os cavalos desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam erguidos em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos outros, retombados no enrolar dum bolo, que reboldeou, batendo com uma porção de cabeças no ar, os pescoços, e as crinas sacudidas esticadas, espinhosas: êles eram só umas curvas retorcidas!

Consoante o agarre do rincho fino e curtinho, de raiva — rinchado; e o relincho de medo — curto também, o grave e rouco, como urro de onça, soprado das ventas tôdas abertas. Curro que giraram, trompando nas cêrcas, escouceantes, no esparrame, no desembêsto — naquilo tudo a gente viu um não haver de dôidas asas. Tiravam poeira de qualquer pedra! Iam caindo, achatados no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os topetes para cima, numa tremura. Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dôr — o que era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem quase falando, de outros zunido estrito nos dentes, ou saído com custo, aquêle rincho não respirava, o bicho largando as fôrças, vinha de apêrtos, de sufocados.
— “Os mais malditos! Os desgraçados!”

O Fafafa chorava. João vaqueiro chorava. Como a gente tôda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não havia remédio. À tala, êles, os Hermógenes, matavam conforme queriam, a matança, por arruinar. Atiravam até no gado, alheio, nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o comêço, tinham querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os animais iam amontoando, mal morridos, os nossos cavalos!

Agora começávamos a tremer. Onde olhar e ouvir a coisa inventada mais triste, e terrível — por no escasso do tempo não caber. A cêrca era alta, êles não tiveram fuga. Só um, um cavalo claro, quer o de Mão-de-Lixa e se chamava Safirento. Se aprumou, nas alças, ficou suspenso, cochilasse debruçado na régua — que nem que sendo pesado em balança, um ponto — as nádegas ancas mostrava para cá, grossas carnes; depois tombou para fora, se afundou para lá, nem a gente podia ver como terminava. A pura maldade! A gente jurava vinganças. E, aí, não se divulgava mais cavalo correndo, todos tinham sido distribuídos derrubados!

Aquilo pedia que Deus mesmo viesse, carnal, em seus avessos, os olhos formados. Nós rogávamos as pragas. Ah, mas a fé nem vê a desordem ao redor. Acho que Deus não quer consertar nada a não ser pelo completo contrato: Deus é uma plantação. A gente — e as areias. Aturado o que se pegou a ouvir, eram aquêles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquêle rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada da aflição: e carecia de alguém ir, para, com pontaria caridosa, em um e um, com a dramada dêles acabar, apagar o centro daquela dôr.

Mas não podíamos! O senhor escutar e saber — os cavalos em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para morrer de não morrer, e o rinchar era um chôro alargado, despregado, uma voz dêles, que levantava os couros, mesmo uma voz de coisas da gente; os cavalos estavam sofrendo com urgência, êles não entendiam a dôr também. Antes estavam perguntando por piedade.

— “Arre, eu vou lá, eu vou lá, livrar da vida os pobrezinhos!...” — foi o que o Fafafa bramou. Mas não deixamos, porque isso consumava loucura. Não dava dois passos no eirado, e ele morria fuzilamento, em balas se varava, ah. Agarramos segurado o Fafafa. A gente tinha de parar prêsa dentro de casa, combatendo no possível, enquanto a ruindade enorme acontecia.

O senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e acusa buracões profundos, e às vezes dão ronco quase de porco, ou que desafina, esfregante, traz a dana dêles no senhor, as dôres, e se pensa que eles viraram outra qualidade de bichos, excomungadamente. O senhor abre a boca, o pêlo da gente se arrupeia de total gastura, o sobregêlo. E quando a gente ouve uma porção de animais, se ser, em grande martírio, a menção na idéia é a de que o mundo pode se acabar.

Ah, que é que o bicho fez, que é que o bicho paga? Ficamos naquelas solidões. Alembrar que tão bonitos, tão bons, inda ora há pouco êsses eram, cavalinhos nossos, sertanejos, e que agora estraçalhados daquela maneira não tinham nosso socorro. Não podíamos! E que era que queriam êsses hermógenes? De certo seria tenção deles deixar aquêles relinchos infelizes em roda da gente, dia-e-noite, noite-e-dia, dia-e-noite, para não se agüentar, no fim de alguma hora, e se entrar no inferno?

Senhor então visse Zé Bebelo: êle terrivelmente todo pensava — feito o carro e os bois se desarrancando num atoleiro. Mesmo mestremente êle comandava: — “Apuremos fogo... Abaixado...” —; fogo, daqui, dali, em ira de compaixão. Adiantava nada. Com pranchas de munição que a gente gastasse, não alcançávamos de valer aos animais, com o curral naquela distância. Atirar de salva, no inimigo amoitado, não rendia. No que se estava, se estava: o despoder da gente. O duro do dia.

A pois, então, me subi para fora do real; rezei! Sabe o senhor como rezei? Assim foi: que Deus era fortíssimo exato — mas só na segunda parte; e que eu esperava, esperava, esperava, como até as pedras esperam. “A faz mal, não faz mal, não tem cavalo rinchando nenhum, não são os cavalos todos que estão rinchandoquem está rinchando desgraçado é o Hermógenes, nas peles de dentro, no sombrio do corpo, no arranhar dos órgãos, como um dia vai ser, por meu conforme... Assim, d’hoje-em-diante doravante, sempre temos de ser: êle o Hermógenes, meu de morte — eu militão, ele guerreiro...” Assim o relincho em restos, trescortado. Aquêles cavalos suavam de derradeira dôr.

Agarrávamos o Fafafa, segurado, disse ao senhor. Mas, mais de repente, o Marruaz disse: — “A bom, vigia: olha lá...” O que era. Que êles — quem havia de não crer? que êles mesmos agora estavam atirando por misericórdia nos cavalos sobreferidos, para a êles dar paz.
Ao que estavam. — “As graças a Deus!...” — exclamou Zé bebelo, alumiado, com um alívio de homem bom. — “Ah, é marmo!” — o Alaripe exclamou também. Mas o Fafafa nem nada não disse, não conseguia: o quanto pôde, se assentou no chão, com as duas mãos apertando os lados da cara, e cheio chorou, feito criança — com todo o nosso respeito, com a valentia ele agora se chorava.

Aí, então, se esperou. Durado de um certo tempo, descansamos os rifles, nem um tirozinho não se deu. O intervalo para deixar a êles folga de matarem em definitivo nossos pobres cavalos. Mesmo quando o arraso do último rincho no ar se desfez de vez, a gente ainda se estarrecia quietos, um tempo grande, mais prazo — até que o som e o silêncio,e a lembrança daquele sofrer, pudessem se enralecer embora, para algum longe. Daí, depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Êle existe — mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?

(...)”




Fonte: Grande Sertão: Veredas by João Guimarães Rosa
Livraria JOSÉ OLYMPIO Editora.
Rio de Janeiro. 2ª edição. 1958, pp. 320/24.



Imagens: 1 - by Miguel Riopa/AP; 2 - by Jornal "O Coura"/Portugal